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Dizem que o filósofo alemão Jüngen Habermas, em visita ao Rio de
Janeiro, olhou para aquele mundo de favelas sobre os morros, repletas de
excluídos do asfalto, dominadas por traficantes e carentes de quaisquer atuações
do Estado e murmurou para o cicerone ao lado: - “A minha teoria da ação
comunicativa, que se baseia na igualdade dos sujeitos do discurso racional,
teria sido outra se eu tivesse vindo aqui antes.” A tradução corrente para este
diálogo é que é impossível falar em racionalidade, direitos e igualdades frente
a desigualdades tão profundas.
Há quem conte que o francês Michel Miaille, perdido nas bordas de
uma grande cidade do Brasil, e diante da miséria clarividente perguntou a um
aluno: - “O que vocês vão fazer quando todas estas pessoas da periferia
resolverem invadir os vossos quintais?”
Não há como saber se tais diálogos existiram, mas ‘se non é vero, é bene trovato’, e ambas
as falas servem como alegorias, sem muito rigor, para a análise que pretendo
fazer dos acontecimentos na ilha de São Luís.
O passado cobrou seu preço!
O presente tem a responsabilidade do futuro!
Somos uma sociedade ilhéu minoritariamente de classe media baixa, comprimida
entre bairros bem próximos uns dos outros e cercados pela mesma massa de
excluídos citada pelo alemão. E a conta – a invasão das praias e dos quintais –
a que aludia o francês, virou primeira página do nosso jornal do dia.
O Maranhão é o Estado mais pobre da Federação. Tem o pior IDH do
país. Em nenhum outro lugar morrem tantas crianças na primeira infância. Não há
onde exista tanto analfabetismo, desemprego, desamparo e miséria em solo
brasileiro. Vejamos os dados do Pisa - Programme for International
Student Assessment - e descubramos que a Atenas
brasileira virou apenas brasileira. O Brasil está no terceiro mundo. Estamos no
terceiro mundo do Brasil. O Brasil tem padrões sul-americanos de educação,
saúde e emprego – todos muito ruins - e nós temos padrões africanos – todos
deploráveis. Estamos qualitativamente mais próximos da Tanzânia e de Uganda do
que do Chile ou da Argentina. E isto é estatístico e está disponível para quem
desejar ver. São dados técnicos, e não mera figura de retórica.
Na penitenciária de Pedrinhas, esta massa de excluídos, condenados
e miseráveis, chega desde este universo em que o Estado lhe nega tudo, e onde é
impossível viver sem violência. Ali, ela mergulha num processo maior ainda de desumanização,
que reduz o homem a uma sobra do que é ser humano. A família do preso é
obrigada a trabalhar para os chefes do crime, sob pena de morte; os detentos
são obrigados a permitirem que suas esposas mantenham relações sexuais com
outros – numa espécie de estupro consentido – em troca de sobrevivência. E o
que dizer destas mulheres que para não morrerem, têm de suportar tamanha
barbárie? É fácil traficar armas, drogas, celulares e o que mais de necessário
for, vez que a administração penitenciária ou é refém da criminalidade ou
conivente com ela. Olhar nos olhos de alguém pode significar decapitação;
querer alguma humanidade pode significar a morte.
Neste estado d’arte, de completa ausência de humanidade, de
falência do Estado, de descontrole da administração do espaço, o que nos
assegura que nossos quintais não sejam invadidos e as espoletas estourem os
nossos miolos, na primeira oportunidade? O que têm a perder os excluídos da
cidade - reduzidos à essência animal - que os fazem não invadir todos os
quintais do mundo?
E que defesa é acessível aos inocentes pobres do asfalto que não
possuem hipótese alguma de resistência? Que morrem carbonizados nos ônibus numa
cidade onde não há sequer unidade médica para queimados?
Há quem defenda para Pedrinhas a Solução Final. Propositadamente eu uso o mesmo termo do nazismo
alemão para demonstrar o tamanho da absurdez e da desumanização que isto também
representa. Cercados de tanta miséria e violência muitos de nós pensam
violentamente. Ao considerarmos fazer com a penitenciária o mesmo que foi feito
no Carandiru, estamos nos igualando aos mesmos sub-homens que ordenam decapitações, que queimam crianças nos
ônibus, e que se responsabilizam por 65 assassinatos em um ano, bem ao nosso
lado. Este dado, por si só, já representa metade de um Carandiru de Homicídios.
O complexo de Pedrinhas não é mais uma penitenciária. É uma
trincheira do crime. É uma escola de delinquência que somente existe por que
criamos uma fábrica de exclusão social, fabricamos uma usina de miséria, nos afogamos
num mar de corrupção, envoltos numa ausência também criminosa.
Vamos eternamente nos prender ao círculo vicioso de prender,
desumanizar e matar? Vamos criminalizar a exclusão, punir a miséria, mergulhar
num genocídio dos miseráveis e criminosos – embora degradantes e degradados – e
manter intacta a máquina que constrói esses perfis?
Recebemos a conta! Estupefatos como se não fosse crível que a lama
que rodeia a ilha pudesse em fim invadir as areias das praias, a Jerônimo de
Albuquerque, a Colares Moreira e a Holandeses. Atônitos, perguntamos nas
esquinas o que deve ser feito. Por incompetência e egocentrismos seus e meus
não percebemos através dos anos o que se passava a nossa volta. Você que me lê
e eu que escrevo somos a minoria na nossa terra pelo simples fato de sermos
alfabetizados para além de sabermos desenhar o nome; e somos mais minoria ainda
por que podemos escrever em um computador e comprar um jornal para ler.
Quem são os culpados e o que podemos fazer?
Nossa origem portuguesa e cristã europeia sente necessidade de
procurar culpados. Ouso dizer que culpados somos todos nós. Por omissão ou por
ação, permitimos que tudo chegasse aonde chegou. Uns de nós bem mais - outros um
tanto menos - fechamos os olhos para a violência e a degradação que invadiu os
quintais do nosso mundo.
Precisamos urgentemente de menos dinheiro gasto em campanhas
eleitorais; menos corrupção; mais investimentos em saúde, educação, mobilidade
urbana, moradia e tudo o mais que pode fazer do bicho que existe dentro de cada
ser, um verdadeiro homem. Menos egocentrismo elitista e mais humanismo, talvez
ajudassem. É certo que mais policiamento, mais segurança, mais presídios e uma
urgente desconstrução da Trincheira Criminal de Pedrinhas são metas prementes,
porém incapazes de resolver o problema que se instaurou.
Sobre o que me propus a dizer neste artigo, lembro-me de um adesivo
colado nos carros de Buenos Aires, pela junta militar, acusada
internacionalmente de matar diversos dissidentes e ofender aos direitos humanos
do povo argentino: Os argentinos são
direitos e humanos! O discurso do poder era transformar a observação dos
erros em meras ofensas externas, ditas por quem não amava a própria pátria.
Vamos nos lembrar que deixar de reconhecer os problemas de quem se
ama é o primeiro passo para perder o objeto amado.
Como dirá outra vez o eterno José Chagas, e dele lembro pensando na
minha São Luís, no meu lugar…
"Palavra
quando acesa não queima em vão,
deixa
uma beleza posta em seu carvão.
E se não lhe atinge como uma espada.
Peço não me condene oh minha amada.
Pois as palavras foram pra ti amada.”
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Ney
Bello é Professor,
escritor e desembargador federal
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